Preconceito – Um Pecado Mortal

Leni W. Saviscki

A desordem já tomava conta da vida daquele menino. Crises e mais crises que eram diagnosticadas como “doença nervosa” e que os medicamentos não controlavam.

Ele tinha apenas 15 anos de idade e apesar de ter rosto sempre sorridente demonstrando simpatia, não fazia amigos e quando isso acontecia, eles logo se afastavam. Na escola sentia-se isolado e diferenciado, tornando-se assim introspectivo e tímido.

Nem ele sabia porque certas coisas estavam acontecendo em sua vida, como também não sabia com quem esclarecer tantas dúvidas que o assaltavam. Desde pequeno, sentia-se diferente dos outros garotos. Não gostava de brigas e nem de jogos brutais e apesar de se dar bem entre as meninas, nunca sentiu atração especial por nenhuma delas.

Sua mãe, dona Quitéria, pessoa humilde, sem instrução nenhuma, cansada de não receber respostas da medicina, se socorreu com a vizinha que lhe indicou um Terreiro de Umbanda para que ela recebesse orientação espiritual.

Apesar de sua crença católica, foi em busca de uma “solução”.

Ao entrarem no terreiro, mãe e filho foram recebidos por alguém que distribuía fichas de atendimento. Para um atendimento especial com “certos guias mais fortes” teriam que pagar certa quantia, para outros guias “menos fortes”, outro valor e para o atendimento de caridade, com os médiuns iniciantes, não pagariam nada, mas entrariam na fila que já se estendia fora da casa.

Não tendo com que pagar nenhuma ficha especial, submeteram-se a aguardar na fila da caridade. Os trabalhos iniciaram-se e para quem não conhecia a Umbanda, certos fenômenos que aconteciam em frente aquele congá, assustavam.

Incorporações barulhentas, onde alguns médiuns soltavam grunhidos, outros se contorciam jogando-se no chão tendo que ser socorridos por outros que gritavam mais alto ainda.

Alguns gargalhavam muito alto e pronunciavam palavras que não combinavam com um ambiente, supostamente de oração. Uma mulher de meia idade, com pose insinuante dançava em frente aos homens afagando-lhes o rosto enquanto soprava neles a fumaça de uma cigarrilha.

Após isso, desincorporaram e trocando o som da curimba, agora “baixavam” espíritos de caboclos de forma menos espalhafatosa. Demorou mais de meia hora até que se organizassem e iniciasse o atendimento ao público.

Primeiramente foram atendidas todas as fichas, depois os passes de caridade. Os “médiuns fortes”, aqueles que atendiam com fichas, foram desincorporando e reuniram-se num canto da sala a conversar descontraidamente, como quem diz: – Por hoje cumprimos nossa missão.

Quando chegou sua vez, dona Quitéria e o menino foram conduzidos em frente a um médium que se dizia incorporado por um caboclo. Após a saudação costumeira e o relato da situação pela mãe, ele falou:

O problema é que esse rapaz tem uma Pomba-Gira grudada nele, por isso está ficando afeminado. Os dois ouvindo isso, se olharam assustados e aquilo que os fez esperar na fila, que era a esperança de uma solução para a doença do rapaz, tornava-se agora um diagnóstico terrível.

A mulher sempre ouvira falar que Pomba-Gira era uma espécie de espírito de prostituta que assediava os homens.

Mas ele é apenas um menino e nem se meteu em nenhum antro de perdição, como pode isso? Indagou a mulher.

Isso é carma, herdado do pai que morreu devendo muito nos cabarés…

A mulher que nada entendia de carma, imaginou que fosse uma espécie de pecado mortal e acabou concordando, pois seu marido sempre foi danado mesmo.

O “dito” caboclo receitou banhos de descarrego, defumação com casca de alho e oferendas de encruzilhada para aquietar ou expulsar a suposta entidade obsessora.

Como também, sutilmente falou, que se isso tudo não resolvesse é porque o caso era grave e então eles poderiam procurar seu aparelho, fora do terreiro, que ele faria um “trabalho” especial que resolveria de vez o problema.

Claro, isso custaria uma certa quantia em dinheiro.

Mãe e filho saíram do terreiro transtornados e assustados, mas decididos a não fazer nada pois sentiam algo de estranho naquilo tudo.

– Filho, vamos fazer uma promessa para Nossa Senhora da Aparecida e ter fé, que você vai melhorar.

Mas o menino estava tão desesperado com sua situação que agora ele próprio suspeitava que tivesse tendências homossexuais, por isso resolveu que voltaria na semana seguinte e compraria uma ficha com um “guia forte”. Ele haveria de dar as respostas que procurava.

Durante a semana no entanto, uma amiga intuída por seu protetor, o convidou para ir com ela rezar “num lugar bem legal”. Tratava-se de outro Centro de Umbanda e ao chegar ao local pode observar que diferenciava bastante do anterior .

Um congá simples, onde os elementos eram representados em cima de uma toalha branca, com a figura do Mestre Jesus na parede ao alto.

Foram recepcionados por duas senhoras simpáticas que lhes explicaram sobre o atendimento que era todo caridade, sem cobrança alguma e nem distinção de guia.

Os trabalhos de abertura iniciaram com orações de toda a corrente de médiuns que em plena harmonia com o coral, cantavam pontos ao som de dois atabaques, numa cadência que instigava a assistência a cantar também.

Era dia de gira de Preto-velho e assim que iniciaram as incorporações, percebia-se o equilíbrio dos médiuns que sem alarde, conectavam com a energia de seus protetores e guias e após saudarem o congá, colocavam-se em seus lugares silenciosamente.

Ao silenciar os pontos cantados, o guia chefe manifestou-se saudando a todos e deixando uma mensagem onde falou das dores da alma e cujas palavras pareciam ser endereçadas àquele menino que os visitava pela primeira vez.

Logo em seguida iniciou-se o atendimento e quando o cambono o encaminhou até a frente do Preto-velho, ele já estava sentindo-se tão bem que nem sabia mais se precisava das respostas.

Sua alma vibrava uma paz muito grande e ao mesmo uma alegria, uma vontade de estar lá, junto aos médiuns exercendo a caridade, embora ainda não compreendesse bem o significado de muitas coisas.

Salve zi fio! – Saudou o preto velho que fumegava um cachimbo.

Salve! – Respondeu tímido o rapaz.

Suncê zi tá afogado nos medo, num é zi fio?

Estou com medo de que eu não… não… não seja… como os outros… o senhor me entende?

Ih.. ih… zi porque esses pensadore zi fio?

É que sou diferente, penso diferente, e além do mais, fui num terreiro e o guia me falou que tenho uma Pomba-Gira, mas isso é coisa de mulher.

O Preto-velho balançando a cabeça, benzia com um galho o peito do menino para desafogar aquela angústia toda.

Zi fio, nego véio vai fazê o faladô com a lingua de zi fio e vai zispricá o que zi tá acontecendo.

E com seriedade e voz firme, a bondosa entidade passou a explicar para aquele menino assustado que sua suposta doença tratava-se apenas de uma missão mediúnica que desabrochava a medida que ele crescia e que precisava de orientação e educação para depois iniciar um trabalho na caridade.

Explicou o que era a vibração ou entidade chamada Pomba-Gira, desmistificando a imagem errônea que haviam lhe passado. Chamando o cambono solicitou que o inscrevesse no curso, cujo tema era mediunidade e Umbanda e que seria ministrado naquele terreiro.

Ao sair dali, parecia que havia tirado um peso enorme das costas por ouvir do Preto-velho que o fato dele ser um espírito já bastante evoluído, sua índole não comportava atitudes grosseiras e machistas, próprias de quem ainda carrega muita animalidade consigo. Mais sutilizado, seu espírito buscava a companhia do sexo feminino por achar entre as mulheres a meiguice que se compara aos espíritos elevados.

E complementando sua alegria, o Preto-velho lhe afirmava que havia sim uma Pomba Gira que ansiava por sua educação mediúnica para poder com ele trabalhar, reequilibrando os desequilibrados, pois independente do sexo do médium, as entidades se manifestam dentro de uma necessidade ou de uma missão que adequa-se a ambos.

A partir daquele dia nunca mais foi acometido das ditas crises de nervos.

Freqüentando aquele Centro de caridade e educando sua mediunidade ele logo se integrou na corrente a pedido de Pai Joaquim. Como cambono, auxiliava e aprendia com as entidades amorosas, que ali vinham prestar a verdadeira caridade.

Com o tempo, harmoniosamente suas entidades foram equilibrando o aparelho e uma a uma se manifestavam, até que certo dia sentiu uma vibração diferente e muito forte. Segurou o quanto pode aquela energia até que explodiu numa gargalhada e num rodopiar do seu corpo, completando ali a incorporação.

Sua amiga Pomba Gira havia chegado.

Sem maiores alardes, sem gestos obscenos ela passou a trabalhar com o aparelho que agora estava pronto para tal. Sua gargalhada habitual apenas representava o mantra por ela usado, que através do som agia no astral como agente transmutador de energias pesadas agregadas aos corpos dos filhos tratados.

No final dos atendimentos de caridade daquele dia, Pai Joaquim manifestou-se em seu aparelho para um esclarecimento necessário à corrente mediúnica:

Que o grande Zambi abençoe todos os filhos!

Este negro velho que ronda por muitos terreiros e que nas idas e vindas da carne já viu e ouviu de tudo um pouco, foi aprendendo que os preconceitos que ainda estão cristalizados na mente dos homens, são os maiores entraves para a evolução dos mesmos.

Falam muito de “pecado” e até relacionaram o que é pecado, mas poucos sabem que pecar é contrariar ou agredir a lei. O que será que as pessoas fazem ao discriminar quem quer que seja?

Quantos filhos traumatizam, se auto-rejeitam e sendo isolados da convivência social chegam a tirar a vida do corpo pelo preconceito sofrido, quando apresentam qualquer atitude que escape do convencional.

Todos nós fomos feitos à imagem e semelhança do Pai, mas isso não quer dizer na aparência exterior. Carregamos uma centelha divina e isso nos faz iguais, mas habitamos em espírito um corpo que apresenta em cada existência terrena uma personalidade e isso nos diferencia, nos faz únicos. Respeitar essa diferença é respeitar a Lei, a divindade.

Por outro lado, esse negro velho fica entristecido com que andam fazendo com a Sagrada Umbanda. As distorções que os homens são capazes, na a tradução da palavra “caridade”, extrapola a nossa capacidade de entendimento.

Quando rebaixamos nossa vibração e elevamos a do médium para que nesse encontro se dê a passagem da entidade espiritual no plano físico, o fazemos por ordem suprema e agimos dentro de uma lei superior, regida pelo amor.

Impossível o fazermos fora da ordem e da meta de amparo aos filhos de fé necessitados de auxílio.

Quando a desordem comanda uma reunião em qualquer templo independente do rótulo usado, quando os egos se manifestam, sobrepondo-se à simplicidade, ao amor e a humildade, isentando-se da verdade, quando não se define o que é caridade e rola por entre os dedos o vil metal, quando não se sabe ainda diferenciar a mão direita da esquerda, sinto muito meus filhos, mas ali não existe vibração adequada para a luz adentrar. É da Lei!

Abençoando a todos, estalou seus dedos emanando faíscas de luz que agiram limpando o local dos miasmas ainda existentes.

Saravou as Sete Linhas da Umbanda e largou seu aparelho, deixando em todos uma sensação de paz.

As luzes do terreiro se apagaram na parte física, mas no astral reluzia sempre naquele ambiente, o brilho da caridade.

História contada por Vovó Benta
Leni W. Saviscki

Causos de Umbanda Volume 2 – Páginas 37 a 41 – Vovó Benta / Leni W. Saviscki

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2 comentários

  1. Certamente, é necessário muita vigilância.
    Não devemos deixar a vaidade sobrepôr à humildade. O texto nos explica claramente, como devemos nos comportar.
    Saravá Umbanda! Parabéns por esse texto.

  2. Excelente, o dia que o ser humano esquecer um pouco a vaidade, orgulho e ter humildade, ai sim estara contribuindo para um mundo melhor e ajudando a mostrar a verdadeira UMBANDA.
    “NÃO DEVEMOS ESQUECER QUE NA UMBANDA TODAS AS FORÇAS CONVERGEM PARA UM SÓ FIM: O AMOR, A PAZ E A CARIDADE”.

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